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EntreNós_ Galeria Andrea Rehder Contempo
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EntreNós | 2019 

Fiar-se a um mundo onde se possa existir

Há, decerto, uma sabedoria sensível dos nós e dos laços. Como no “complexo do amarrar” , percebido por George Dumézil em alguns mitos indo-europeus (Varuna, Urano, Odin), e por Mircea Eliade em outros universos simbólicos, que tem, no nó, sua potência relacional e cosmogônica. Divindades ambivalentes que tanto atam como desatam, e cuja magia faz as formas interpenetrarem-se e absorverem umas às outras.

 

O fantástico desses deuses ou mestres é que suas façanhas escapam das representações que ordenam e hierarquizam, a partir de um centro, todas as divisões, modelos a copiar e valores de uma sociedade. Os mestres dos nós realizam um outro modo de operação, a de atar, e provêm uma outra espécie de relação do homem no mundo: o laço. Distinto do retorno e partida de um centro ou de uma origem, o laço dispõe outro tipo de movimento: “exprime sensivelmente” em sua operação complexa, densa e imprecisa, que a vida coletiva e pessoal, cósmica e cotidiana, é um entrelaçamento de relações, é uma trama sem centro. Tramas invisíveis que, em culturas diversas, enlaçam realidades diferentes sobre um plano cósmico e pessoal: o fio do destino nas Moiras, a figura de Nossa Senhora Desatadora dos Nós, o tecer do Cosmos à vida cotidiana escrito nos mantos andinos, que vestem o corpo como uma pele de conhecimento e memória ancestral. 

 

EntreNós de Regina Pessoa evoca, quiçá, a sabedoria dos mestres dos nós: uma poética de (co)existência nos/dos mundos pelo ato de enlaçar. Seus desenhos, pinturas, vídeos, objetos operam tessituras, mas também fricções e carícias. Lançam-se em teias e superposições, em transferências de peles e memórias, em fragmentos e suturas. Nas analogias que estabelece, “nós” é, por homofonia, pronome pessoal e substantivo masculino; “confio” é verbo de fé e linha que ata gestos de abrigo e proteção.  Fiar-se a mundos onde se possa existir.

 

Atar tempos e lugares, memórias e esquecimentos, a dor mais íntima à alegria cósmica. Nas aguadas em nanquim de seus desenhos-teias, tramam-se cinzas e brancos, trajetos e passagens.  São linhas erráticas que deslizam, saltam, ramificam-se de uma superfície a outra, de um corpo a outro.  Um movimento de tecer um solo comum ainda que para perdê-lo a seguir; um gesto de convocar pela arte a potência das ligações.

 

Se “Desertos”, “Perfura” ou “Caminhos cruzados” são paisagens que emergem de suturas de materialidades e vestígios recolhidos, entre lugares de vida e rastros de ausência, “Apagamentos” são transferências de peles. Em 2016, em pleno processo do Impeachment presidencial, a artista produziu frottages das calçadas da Praça dos Três Poderes em Brasília; em 15 de novembro de 2018, na Praça da República no Rio de Janeiro, ela os apaga ao sobrepor àquelas superfícies marcadas, imagens calcadas de figuras históricas da proclamação, que retornam do passado como espectros que nos assombram os dias. Como se fosse necessária uma segunda pele para enfrentar a asfixia destes tempos cíclicos, de memórias apagadas e dores silenciadas, uma pele-manto-olho-tato para sobreviver na epiderme áspera e hostil do mundo. Zona sensitiva de transferências, um “entre” que retém, transborda e enlaça nossas sombras e fulgurações, nossas misérias e esperanças, em nós e mundos por vir. 

Marisa Flórido

Curadoria e Texto

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Fixo só o prego| 2019 

 

Num cenário onde nos perguntamos o que será feito de nossa democracia, nossa historia e nosso pensamento, Regina criou uma
personagem que ora nos apresenta: a Deusa da República Morta. No impacto dos acontecimentos que produziram o impedimento da
presidenta eleita, a personagem posa, perplexa, sob o céu azul da ca
pital, em frente aos palacios onde o poder habita. Com o desenrolar
dos fatos, atua seu desfile em retrocesso, editado em dois vídeos. Vemos sua ação em Brasília, na Esplanada dos Ministérios (durante o

desfile oficial do 7 de setembro de 2017) em paralelo a seu deambular desolado face ao Museu Nacional incendiado, no Rio de Janeiro,

no 7 de setembro do ano seguinte. A tragédia se movimenta no tempo e no espaço - por vezes, num eterno retorno.

Ana Miguel, Brígida Baltar e Clarissa Diniz

Curadoria e Texto

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Calçadas | 2016

Onde moram as ideias?

É estranho como na naturalidade e cotidiano da vida tropeçamos em coisas dispersas no mundo que nos prendem a atenção de modo singular. Esses encontros despertam uma espécie de noção de pertencimento, como se no mundo estivessem dispersos códigos ou pistas para que nós pudéssemos juntá-las, descobrindo um pouco mais sobre nós mesmos e sobre o próprio mundo.

O que é a história da humanidade senão a história desses encontros entre algo do sujeito e algo disposto no mundo? Ou antes, da tentativa de tradução dos sentimentos e ideias por trás desses encontros? É exatamente disso que trata a série Calçadas, de Regina Pessoa. De um desses raros acontecimentos.

A artista encontra alguns dos assuntos de sua pesquisa na matéria bruta de um caminho cimentado, uma específica calçada localizada bem perto deste Museu, sobre a qual trabalhou a frotagem, técnica de fricção direta que decalca o relevo de uma superfície, transferindo-o para um suporte. Nesta exposição vemos de que forma Regina consegue reconhecer valores específicos no espaço ao redor, coletando-os na suspeita de um sentido a ser explicitado dentro de seu trabalho.

Essa atitude aponta para um tipo de potência dispersa no mundo, um ponto de encontro entre intenção, intuição e acaso de onde se extrairá um assunto, ou antes, de onde os assuntos poderão vir a nos encontrar. A artista então se ocupa do trabalho compulsivo de tentar captar para si, por meio da frotagem, aquele algo existente, por exemplo, na simplicidade de uma calçada. Ora, não é exatamente isso que fazemos com o mundo, todo o tempo?

Talvez a linguagem e toda atividade humana sejam mais ou menos isso, tentativas de frotar o mundo, captar aquilo que de primeiro nos moveu a reproduzir algo íntimo da nossa relação particular com o mundo.

O mais bonito no trabalho de um artista é o impulso que em nós ele desperta, fazendo-nos querer entender e acompanhar seu pensamento, conhecer aquilo que a ele pertence e move-se, para fora e para dentro, quando tenta entender-se como criatura única.

Regina Pessoa conduz seu trabalho buscando o sentido das coisas nas próprias coisas, para encontrar o valor de um trabalho em arte, lembrando-nos de que é sobre o chão que erguemos nossas vidas e que é justo que dele emerja uma expressão.

Ralph Gehre e Renato Lins  

Curadoria e Texto

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 “O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo.”        Merleau-Ponty 

Por qual caminho contar essa história? Pelas questões formais inerentes às obras de arte visuais e o desejo que me impulsionou a realizar esta série? Ou pelos desdobramentos e deslocamentos desse percurso?

Calçadas nasceu de uma atração irresistível por quinze lajotas de concreto ricamente texturizadas, localizadas em pleno eixo monumental de Brasília. Essa mancha pictórica, resultado provável da ação do tempo e do acaso, fica ao lado de um semáforo... e foi assim, de dentro de um carro, que pude observá-la.

Minha primeira ação ocorreu no final de 2014. Optei pela frotagge com o desejo de capturar, de forma íntima e direta, as tramas e texturas dessa calçada plana e pouco movimentada. De lá para cá, foram produzidas mais de 40 obras, todas elaboradas a céu aberto e acompanhadas de registro fotográfico. Fora do ateliê e sujeita às intempéries, terra e chuva somaram-se aos papéis e materiais de arte que fui experimentando ao longo do processo, e a outros não tão usuais, como vassouras, rodos e panos de chão. A construção das obras foi movida por questões formais, interesse que se manteve durante toda a série, além de uma gradativa sensação de pertencimento.

A cada investida, novas percepções e insights. A ausência de pedestres denuncia a Brasília que conhecemos, uma cidade de ruas largas e calçadas estreitas, onde o “lugar” do cidadão parece renegado. O uso da fotografia contextualiza o simbolismo do espaço. Estávamos, a calçada e eu, em pleno coração político do Brasil, formando um vértice entre o Congresso Nacional e o Museu da República.

Sinto-me inteiramente à vontade, mesmo que exposta e suja, toda tingida de pigmentos e grafite. Trabalho de forma intuitiva e focada, apesar do fluxo dos carros e de olhares curiosos ou inquisidores. Percebo a potência performática desse ato que conduz a uma outra Brasília, menos oficial e mais humana. Prossigo com gratidão às pessoas que colocaram a mão na massa para construir esta cidade e suas utopias. As lembranças da Escola Parque, local de despertar para a arte, me trazem o desejo de mapear territórios afetivos. Faço isso munida da máquina fotográfica. Registro, neste novo ato, espaços abandonados e reconstruo minha história.

Regina Pessoa

Artista.

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VãOS | 2014

15 aguadas de nanquim, 11 pranchas de grafite e cera, 4 fotografias e 1 vídeo

Os desenhos atuais de Regina resultam do aprofundamento de sua pesquisa dos processos inerentes à construção dos bordados e das tramas, herdando dos seus entrelaçamentos, intercalagens e superposições o fio condutor do seu trabalho.

 

Suas aguadas de nanquim sobre papel são construídas ora pela concentração ora pela escansão dos núcleos de enosamento da trama em seus enfeixamentos e bordas. A intercepção das inscrições a nanquim preto sucedida de aguadas matizadas formam corredores de ilhotas contornadas por fraturas e filões maiores e menores onde suas recessões e encadeamentos de lacunas compartimentam-se num mosaico de interstícios, vãos e istmos a revelarem-se desde suas próprias estruturas perpassantes.

 

Estas extensões intensamente detalhadas e cujos volumes e profundidades advêm das nuanças de claro-escuros que esculpem o plano fazem lembrar certas estruturas das formações vegetais e minerais, ou ainda as belas configurações adelgaçadas das bacias hidrográficas. As quatro fotografias da mostra anotam esta analogia: replicam a proliferação da mancha gráfica criada pelo efeito de ramagem explorado nos desenhos.

 

Os trabalhos realizados no atelier de C. Watson em 2007 contrastam fortemente com o recorte minucioso e as delicadas transparências que caracterizam os desenhos a nanquim. Duas séries no total de sete pranchas (75cmx352cm) justapostas a partir da linha ígnea de seu horizonte comum abrem a exposição. Sua densidade e seu lustro, conseguidos pelo agregado de sucessivas camadas de pó de grafite e cera, induzem à percepção de que as aguadas de nanquim constituem-se como por descolamento das camadas mais exteriores dessa massa mineral, revelando o substrato sólido do qual brotam.

 

De mesma data, quatro outros desenhos exsudam esta mesma qualidade mineral, inorgânica, muito próxima da gravura nos seus matizes e texturas. No único vídeo da mostra, uma malha reticulada tremeluz no movimento ininterrupto de sua projeção; tecida de sol e água traduz lisa e fluida o mapeamento poético que orienta a pesquisa de Regina.

Nina do Valle

 
Curadoria e Texto

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Videoinstalação corpoalma | 2011

Obras tridimensionais e efêmeras, abrigadas sob uma determinada configuração do espaço, durante um certo período de tempo, as videoinstalações tomam corpo sob uma determinada forma, forma esta indexada ao espaço físico onde se corporificam.

 

Uma de suas características é a impossibilidade de experimentar este “lugar” por meio de registros fotográficos, videográficos ou os usuais catálogos de memória da montagem, pois estes formatos reduzem a experiência de um objeto tridimensional ao campo bidimensional. Ou seja, a fruição de uma videoinstalação é a sua prática, dá-se em presença, pois é ao visitante que ela se destina, corpo e sede onde a obra se realiza.

 

A proposta de Regina Pessoa e Renato Barbieri põe em compasso uma reflexão entre matéria e essência e arte e memória, grafados aqui num só significante sob o titulo corpoalma e teve sua primeira montagem na Galeria Cal, Casa da Cultura da America Latina, UnB, Brasília, de 24 março a 29 de maio de 2011.

A metade “instalação” de corpoalma coteja dois objetos de mesma natureza: instrumentos musicais, piano e violino, em estado de ruína; dois bancos para assento e os componentes eletrônicos: dois canais de imagem e som em vídeo, que constituem a metade “vídeo”, com duração de 8 minutos de projeção em looping.

 

A imagem-som projetada sobre estes objetos consiste na execução da composição musical de Luiz Olivieri para violino e piano, e cujo efeito é o da “animação” dos instrumentos por esta imagem-som.

 

Em corpoalma, os instrumentos musicais, tradicionalmente suportes do som, tornam-se suportes da imagem, comparecem como borda, saliência tridimensional para o repouso do olhar sobre as superimposições das imagens-som. Nesta câmara claro-escura, a onda sonora, que transporta energia sem transportar matéria, anima a matéria arruinada, circulando nos percursos de sua música.

 

Numa inversão em relação à cena do cinema, onde a fonte da imagem antecede o ponto de vista do visitante, nesta câmara claro-escura os projetores se oferecem como horizonte da inauguração de uma cena - cada um, segundo cada qual. Já experimentou?

Nina do Valle

Curadoria e Texto

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SobreVéus | 2007 


As obras da artista Regina Pessoa celebram os véus como criaturas vivas e orgânicas, onde, em sua essência, se revelam num forte erotismo. O desenho de Regina, delicado e feminino, envolve registros das etapas percorridas, reflexões sobre a intimidade do mundo mulher, encarnando o exercício de olhar este mundo com prazer.

 

Inicialmente a artista se deixou envolver pelo desenho monocromático, em nanquim, de Burle Max. Porém, suas formas “nadam no espaço”, realinhando-se ao menor movimento do ar, presenteando um ambiente aberto, arejado. É vento! Que cobre e descobre, clareia e obscurece. 

 

A técnica dos seus trabalhos se iguala ao sentimento, ao vácuo amenizado pelo conteúdo – parece sublime, cheio de luz, de significado e do caos do êxtase. A ideia do “acaso” guia a obra; sendo assim, tudo se torna uma possibilidade, como o valor da linha e dos véus. Não há um caminho preestabelecido, lógico, claro e contido – o que provoca a todo instante desvios inusitados. É a maneira de Regina encarar o mundo, seguindo o fluxo, não determinando; se deixando determinar.

 

Sua cor silencia, as emoções afloram. Festejando os campos de cor, do verde, regeneração, do vermelho, amor, paixão, sexo implícito; explícito da relação da cor com a presença do branco e do preto – é a calma e o silêncio, permeados de sussurros de tons, de forma, de textura, de volume. Compulsão de registrar as próprias emoções, pois estas imagens guardam sentimentos do mundo, da própria identidade da artista.

 

Regina Pessoa decide apresentar seus trabalhos como figura e erotismo presentes. Há uma apreciação, contemplação, em um jogo do esconde, acoberta, coberta, encobre, descobre, explicitando o corpo, desvendando sensações, percepções. Convida-nos a um jogo de voyerismo.

 

É a materialização da passagem de exposições de obras líricas já apresentadas em sua primeira fase, que era a do não saber e saber, e, no intermédio, do tratar e trabalhar para mostrar com sutileza e leveza – e agora às claras, sem receios. São imagens flutuando em fundo branco, simplificação do olhar, da idéia, do pensamento, libertação do peso do objeto, libertação do ruído, explosões de silêncio, explosões de espaços.

 

Espero que Regina Pessoa continue com vontade de mistério, de questionamentos, de conflitos, fragilidades, de encaixar desencaixando, de erotizar a leveza do branco para que Ítalo Calvino continue (onde esteja) a perguntar: “de onde provêm as imagens que ‘chovem na fantasia’.

Suyan de Mattos

Artista Plástica. Posdoc em Artes (Universidade de Buenos Aires)

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SobreVéus | 2006

 

Em arte, é sempre aconselhável distinguir se o que nos causa interesse advém da forma ou da matéria abordada. Ocorre, mais das vezes ser a matéria capaz de trazer algo interessante, ou pelo menos curioso, uma vez que o tema seja algo acessível apenas àquele sujeito que a elabora. Por outro lado, em contrapartida, quando o assunto de importância é a forma, já que a matéria é conhecida e acessível a todos, observamos que o como é pensado é que traz valor ao esforço de pensar sobre esse tema.

 

 O desenho de Regina se vale de matéria conhecida: a geometria; e de referências a pedras e vegetais. Porém, algo me diz que um caminho próprio se delineia. Delicado e feminino, o desenho de Regina sugere uma verdade inerente, pois que se revela atraente aos sentidos, fato que não condiz com a artificialidade.

 

As transparências, as linhas, revelam uma geometria orgânica, um tecido composto de realidades superpostas, véus sobre véus que se impõem de um jeito tão delicado que faz do assunto algo rico em complexidade.

 

A forma aqui parece apontar para aquilo que é mais raro: falar da realidade que nos cerca sob uma nova perspectiva. Sempre que nos deparamos com uma nova natureza do real e do cotidiano, somos levados a rever a nossa idei da realidade, o que nos suscita a uma reflexão. Pittura è cosa mentale, já disse o Leonardo.

 

Sergio Lucena

Artista Plástico / SP (Prêmio Mário Pedrosa - Associação Brasileira de Críticos de Arte, ABCA - Destaque como artista contemporâneo no ano de 2011)

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Como habitar o PRESENTE? | 2020 

Ato 1 - É tudo nevoeiro codificado

(…) existem três presentes, o presente do passado, que é a memória, 
o presente do futuro, que é a expectativa, o presente do presente, 
que é a intuição (ou a atenção). Este triplo presente é o princípio 
organizador da temporalidade (...) (RICOEUR, 2000, p. 360)

​​Esta é uma exposição, dividida em dois atos, que acontece em um mundo pandêmico onde a noção de tempo, passado, presente e futuro parece estar dilatada. Neste sentido, convido a pensarmos em uma distensão do tempo, onde habitamos três presentes: presente do passado (memória), presente do presente (atenção) e o presente do futuro (expectativa).

Nesta lacuna temporal, estamos longe de encontrar respostas. Resta-nos lançar provocações de como estar neste entre-lugar. Assim, abrimos espaços para entrar no primeiro ato, com nossos corpos suspensos neste presente fragmentado, lutando pela existência da humanidade como se o corpo estivesse deslocado da matéria e flutuasse pelo fluxo dos rios.

Como diz Mia Couto, “o rio é como o tempo!”. Como se neste lugar de suspensão pairasse um nevoeiro, onde a obscuridade desta densa neblina na nossa retina nos impedisse de enxergar até sermos transportados para uma cidade esvaziada de vidas.

Estamos diante de um tempo hiperconectado e distópico, que sofre tropeços e acidentes, que pode se estilhaçar. Nesta aporia de ser-no-tempo, que a nossa visão de um presente possível parece estar embaçada, é como se entrássemos noutro estágio de vida, outro mundo, onde somos espectadores atuantes em um tempo “fora de controle”, em um planeta que nos alerta para os impactos de uma terra cansada, entrando em colapso, enquanto estamos imersos em anseios, solidão, mortes, negacionismos, videochamadas, zoom, emojis, likes, redes sociais, memes, algoritmos, fakes news e infinitas lives.

Você está diante de uma exposição-projeto, no sentido de projeção para novos mundos possíveis. Em uma época que o vírus Sars Covid-19 afasta nossos corpos e impõe limites e barreiras no cotidiano, nos colocando em um estado de angústia e impotência, evidenciando grandes abismos sociais já existentes, como a precarização da vida, pois as condições impostas pelo vírus não são as mesmas para todos que vivem neste lugar chamado Brasil.

Ao mesmo tempo em que tentamos lidar com os impactos do vírus, somos transportados para uma desaceleração temporal. Quase que em uma ficção, entramos em um lugar de descompasso com a velocidade de informações que recebemos diariamente através das redes sociais, sites e whatsapp. Com a impossibilidade da experiência corpórea, nos adaptamos às formas de estar no mundo, em um território digital, onde estamos sempre online, através das telas dos celulares. No contra-exemplo da velocidade e disponibilidade da cultura da imagem, somos afetados por outras condições de interações e mergulhamos em uma tentativa de reconexão com o mundo.

Neste momento de incertezas, onde esperamos por curas científicas e, até mesmo espirituais, ativamos dispositivos imaginários como experienciar sonhos e rupturas de compartilhar o presente e imaginar o futuro. Seria possível deglutir a memória e fabricar sonhos? Um chamado para acordarmos para “(…) reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia” (KRENAK, 2019).

É preciso encontrar um novo ritmo para o tempo que costumávamos viver, costurar novos mundos possíveis para uma sociedade mais justa, e confiar na potência do amor no intuito de criar formas de reexistir, buscar por estratégias, estranhamentos, horizontes e preenchimentos de como habitar o presente. Uma reconciliação com o tempo. Compartilhar e expandir este tríplice do eterno presente e criar um presente-futuro possível, deste que está em transição, no limiar, no centro da nossa existência.

 

 

Artistas participantes: Anna Bella Geiger, Aslan Cabral, Fernando Velazquez, Gabriela Noujaim, Jeane Terra, Kammal João, Luzia Ribeiro, Manata Laudares, Moisés Patrício, Nadam Guerra, PV Dias, Roberta Carvalho, Regina Pessoa e Vinícius Monte.

 

Érika Nascimento

Curadoria e Texto

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